Isso me rasgou o peito, mas não foi o meu fim

20/09/2018
Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais

De janeiro a julho de 2018, o ligue 180 registrou 27 feminicídios, 51 homicídios, 547 tentativas de feminicídios e 118 tentativas de homicídios. No mesmo período, os relatos de violência chegaram a 79.661, sendo os maiores números referentes à violência física (37.396) e violência psicológica (26.527).

Dados: Ministério dos Direitos Humanos 


Rupi Kaur
Rupi Kaur

O Amor Não é Cruel, você Foi Cruel e Chamou de Amor.

Rita, 42 anos. (Foto: Lara Morais)
Rita, 42 anos. (Foto: Lara Morais)

"Eu conheci ele no colégio, eu tinha 17 anos". Um pouco tímida no início, Rita começa a contar sua história. Como muitas adolescentes, conheceu seu primeiro amor no colégio. Casou cedo, aos 20 anos, e teve sua primeira filha. Talvez para algumas pessoas, conhecer tão jovem alguém com quem quer passar o resto dos seus dias seja a forma mais pura de amor:

"Ele fazia tudo pela gente (Rita e sua filha, na época, recém nascida). Até 2000 mais ou menos ele foi um marido maravilhoso", explica a mulher loira com aparência de menina, que traz as marcas de sobrevivência em sua memória.

"Começou quando ele passou a demorar para chegar em casa. Ele passou a brigar muito comigo." Ela lembra que escutava ofensas diariamente: "Ele falava 'você é uma favelada, mulher de morro' ", e passou a acreditar em tudo o que escutava. "Eu tinha dificuldade de aceitação, achava que eu tinha que ficar com ele porque eu era horrorosa, muito feia e que ninguém ia

gostar de mim. Que era ele quem gostava de mim, mesmo daquele jeito dele, era o que eu ia ter." Aceitando as palavras do ex-marido, passou a se ver como inferior em relação a ele. Já não era mais feliz, mas acreditava que aquele era o único relacionamento que poderia ter: "Eu tentava me convencer que minha vida era boa daquele jeito, porque não tinha como ser melhor".

O medo de criar a filha pequena sozinha fez com que ela passasse a ignorar as humilhações, os atrasos e as brigas. Além da sua paz, Rita também abriu mão dos estudos pelo ex-marido, que não deixava que ela trabalhasse ou estudasse, alegando que, caso fizesse, estaria abandonando a família. Foi quando descobriu que havia sido traída por ele, e que ele havia tido um filho fora do casamento: "Quando descobri a traição eu pensei

'vou voltar a estudar e tentar melhorar, porque quando eu não aguentar mais eu largo ele' ".

Durante dez anos o casamento foi como uma prisão de onde ela não conseguia sair: "Ele tinha picos, né, às vezes ele estava superamável, arrependido, fazia tudo de bom pra gente... E às vezes ele era grosso". Quando descobriu a existência do outro

filho do ex-marido, Rita tentou se divorciar duas vezes, mas o marido prometia que iria mudar, e por medo de ficar sozinha, acreditava. "A gente ficava separado um tempo, aí ele sempre voltava falando que ia mudar, que não queria acabar com a família dele, que amava a gente e eu acabava acreditando, eu pensava 'eu não vou ter como ficar sozinha mesmo, eu não trabalho, a gente tem uma filha...' ".


Rupi Kaur
Rupi Kaur

Após a segunda tentativa de separação, Rita engravidou de sua segunda filha. "A última briga que tivemos eu estava grávida de oito meses. Ele me arrastou por toda a casa pelos meus cabelos." Essa foi a primeira vez em que o ex-marido usou de força física contra ela: "A

gente não acredita que as coisas vão passar daquilo 'ah, foi só hoje, ele não vai fazer de novo", e por se sentir culpada por brigar com ele, escolheu continuar casada. Depois disso, o ex-marido melhorou a maneira de lidar com ela.

Um ano depois que a segunda filha nasceu, Rita começou a trabalhar e as discussões voltaram a acontecer, dessa vez porque ele queria controlar o dinheiro dela. Foi quando ela se sentiu segura para se separar e cuidar sozinha de suas filhas: "Eu disse 'eu não aguento mais. Não quero mais essa vida pra mim. Eu posso passar fome com as minhas filhas, mas eu não quero mais' ". 

Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais

Rita não pediu de volta a chave de casa para que o ex-marido pudesse visitar as filhas. Mas ele não aceitava a separação. Ligava cerca de 80 vezes por dia, mandava mensagens sem parar, a perseguia nos lugares. "Ele chorava e eu tinha pena, sabe? Me sentia mal porque ficamos 17 anos casados." Ele permaneceu seguindo-a durante um mês, até que no réveillon de 2011 pediu para que ela levasse as filhas para a família dele vê-las, alegando que estavam com saudades. Rita deixou-as com a ex-sogra e voltou para casa. "Quando cheguei em casa ele estava lá dizendo que queria conversar. Quando entrei ele trancou a porta, pegou uma faca na cozinha e começou a me ameaçar. Ele dizia 'tá vendo essa faca? Eu vou te matar!'. Eu lembro que estava chovendo muito e ninguém me ouvia gritar. Eu tentei sair do quarto, caí, cortei minha perna... E ele colocando a faca no meu pescoço, eu só pensava 'meu Deus! Ele vai me matar'. " Em pânico, Rita disse que aceitaria o ex-marido de volta, disse que ele poderia buscar suas coisas e voltar a morar com ela. Quando ele saiu, ela ligou para a família dele pedindo para que não deixassem que voltasse, e disse que chamaria a polícia caso o fizesse.

Após esse primeiro episódio, Rita passou a receber ameaças constantes por mensagens. "Ele falava que ia me matar, que aquilo não ia ficar assim." Foi quando decidiu procurar a Delegacia da Mulher em Juiz de Fora e registrar um boletim de ocorrência. Mesmo assim, o ex-marido invadiu sua casa mais uma vez: "Ele entrou e quebrou a casa toda. A porta, uma mesa,

o computador, meu celular, ele disse 'se você não me atende não tem que falar com ninguém', tudo isso na frente das minhas filhas." Ela chegou a chamar a polícia, mas conta que não apareceram. "O boletim você tem um prazo para levar de novo e eles levarem a julgamento, mas ele não fazia em sequência, ele esperava um tempo e voltava. Então eu não levei a julgamento e ele ficou uns dois meses quieto."

Depois desse tempo, em uma noite Rita decidiu sair com uma vizinha, e o ex-marido estava conversando com a filha mais velha ao telefone. Quando ela saiu de casa, ouviu o barulho de um carro se aproximando. O ex-marido jogou o veículo em direção a ela na calçada. "Ele acertou o poste, saiu e me pegou pelo braço, tentando me jogar dentro do carro. Ele me batia muito, eu usava aparelho e ele socou minha boca, socou

minhas costas, me dava chutes... Eu também tentava bater, mas ele era enorme. Minha amiga começou a gritar e minha filha saiu de casa junto com alguns vizinhos, que falaram que haviam chamado a polícia, e ele gritava que ia me matar." Os vizinhos conseguiram tirá-la dos braços do agressor, mas a polícia não veio. "Nenhuma das vezes que chamei eles vieram. Quem quer matar mata, não tem jeito! Quando vejo mulheres passando por isso, eu só consigo pensar 'elas vão morrer' ".

Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais

Segundo Rita, diferente de tantas histórias de mulheres que são agredidas e acabam mortas, ela teve sorte. Realizou exame de corpo de delito e registrou um segundo boletim de ocorrência ao qual deu prosseguimento à denúncia que foi levada a julgamento. "Minha sorte é que ele é medroso. Quando estávamos em frente à juíza ela falou com ele 'se o senhor não tem medo, passe a ter, porque o senhor não sabe o que é passar um dia no Ceresp, onde eu vou te colocar se você olhar para sua ex-mulher outra vez'." Após isso,

ele não a agrediu mais. Ela conta que até hoje o ex-marido tenta saber sobre seus passos, questionando as filhas para onde ela vai, com quem conversa... Mas nunca mais se aproximou dela.

"O primeiro sentimento que eu tenho é de que não queria ter conhecido ele. A única coisa boa que tive disso tudo foram minhas filhas! Eu penso que deveria ter me separado antes, eu acho que esperei muito, vivi dez anos isso. Hoje só penso no tempo que perdi com ele."

Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais

- O que você falaria para a Rita de 20 anos?

"É uma situação que até hoje eu não sei como reagir, mas eu falaria que não precisava daquilo. Hoje eu sei que não preciso de homem e não toleraria qualquer tipo de absurdo que ouvi por tanto tempo. Hoje eu não me sujeito a ter uma má companhia só para ter alguém. Eu sou suficiente."


Você Foi o Primeiro Para Quem Entreguei Meu Coração, e Fez Parecer que Não Valia Nada.

Lara, 18 anos (Foto: Lara Morais)
Lara, 18 anos (Foto: Lara Morais)

"A gente se conheceu e foi tudo perfeito! Ele fez uma surpresa pra me conhecer, me buscou na porta do colégio... E em menos de dois meses a gente já tava namorando." Assim começou o primeiro namoro de Lara, na época com 17 anos.

No dicionário, a paixão é definida como "um movimento impetuoso da alma para o bem ou para o mal", e foi exatamente assim. Repentinamente, ela se viu completamente apaixonada: "Foi a pessoa que mais gostei. Eu pensava 'encontrei meu príncipe encantado' ".

O namoro parecia perfeito. O namorado chegou a proibi-la de manter contato com alguns amigos e de usar certas roupas, mas ela não via aquilo como um problema. "Eu pensava 'é ciúme bobo, bonitinho. Vou me afastar porque ele só quer me proteger'." Sem se dar conta, ela começou a se afastar de todas

as pessoas com quem convivia. O ex-namorado chegou a proibi-la de postar fotos nas redes sociais. "Um dia eu peguei meu celular e vi que ele tinha excluído todos os meus contatos. Aí eu comecei a perceber que aquilo não estava certo porque eu já não estava me sentindo confortável com a situação." Lara era

chantageada diariamente pelo ex que dizia que iria terminar a relação caso ela não fizesse as coisas que ele pedia: "Eu amava ele, sabe? Nunca tinha sentido isso por ninguém, e eu tinha muito medo de ele terminar comigo, pensava que ia ficar sozinha".

O namorado a diminuía constantemente e dizia que ninguém iria amá-la. Lara passou a acreditar que ficaria sozinha caso optasse por terminar o relacionamento. "Foram várias situações de ele me humilhar em público, gritar comigo na rua, ele falava 'você nunca vai encontrar um homem como eu, você é uma vadia'." Ela conta que chegou a fazer várias coisas que não queria para agradá-lo: ia a lugares onde não se sentia bem, vestia roupas que não gostava e saía apenas com os amigos dele. Sem se dar conta, já não tinha mais sua liberdade. "Se eu sumia meia hora do WhatsApp ele surtava comigo, me bloqueava e falava que ia terminar." Ela chegou a ser diagnosticada com ansiedade e síndrome do pânico devido às constantes pressões que vinha sofrendo, e passou a fazer uso de antidepressivos. Mas não via o relacionamento como um gatilho para os seus problemas. "Eu já entrava no WhatsApp com medo do que eu ia encontrar. Eu ficava com muito medo de ele chegar e falar que ia terminar."

"Eu parei de gostar de mim. Por tudo o que ele falava, pelas coisas que eu passei a fazer. Já não era eu mesma." Sentindo-se esgotada psicologicamente, tentou terminar o namoro diversas vezes, mas o ex não aceitava. "Ele chegou a ter relações com a minha prima para poder me atingir, e ficava me mandando mensagem contando." Lara começou a se afastar da família porque não aceitava quando diziam para ela terminar o

relacionamento. O rapaz controlava seus passos e suas escolhas, impediu-a de prestar o vestibular que queria e de se matricular na academia. "A minha vida tinha um eixo, e era ele. Eu vivia pra ele." Passou a se culpar em diversas situações: "Se ele falava que eu estava errada, eu estava errada! E eu me sentia muito culpada por tudo, por querer o que eu queria".

Durante uma tarde, enquanto estava no salão de beleza, o namorado foi até a sua casa e não a encontrou. Ela conta que sentiu desespero ao ver as ligações dele e saiu sem terminar de se arrumar. "Eu fiquei com muita vergonha. Ele me chamava de vagabunda, falava que não queria mais saber de mim, falava que ia me trocar por outra... Aí eu não aguentei e disse que eu não queria mais."

Foto do dia da agressão
Foto do dia da agressão

Depois desse episódio, o ex-namorado foi até a casa dela alegando que precisavam conversar. "Ele já desceu da moto pegando no meu pescoço, apontando o dedo no meu rosto e me acusando de ter traído ele. Começou a me dar muito tapa no rosto, no corpo. Eu tentava segurar nos móveis e acabei cortando minha mão." 
"Eu acho que a gente sempre pensa que a pessoa pode mudar. Eu achava que ele ia mudar porque

eu não acreditava que aquela pessoa que ele era no início tinha se tornado aquele monstro. Quando eu me dei conta, eu já estava me afogando naquela relação."
Orientada por algumas amigas, Lara, na época ainda menor, contou para o pai que havia sido agredida e foi acompanhada por ele até a Delegacia da Mulher em Juiz de Fora. "Eu fiz o boletim de ocorrência e nem precisei fazer corpo delito, porque estava toda roxa."

Foto: Lara Morais
Foto: Lara Morais

- O que você diria para a Lara que namorava com ele?
"Eu cresci ouvindo que eu precisava encontrar alguém. Mas eu não preciso. Hoje

eu vejo que ser solteira não é ruim. É melhor você ser de você do que ser de alguém que vai acabar com você. Você pode gostar de alguém, mas tem que gostar de você primeiro."


Em Juiz de Fora, a Casa da Mulher ( Rua Uruguaiana 94, Jardim Glória) foi inaugurada em 2013 e já realizou aproximadamente 13 mil atendimentos. O espaço oferece serviços e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e conta com profissionais para atendimento psicológico, social e orientação jurídica. 

A Lei "Maria da Penha" (11340/2006) cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Anna Ede, advogada e coordenadora do departamento jurídico dentro da Casa da Mulher, explica que ela vem sofrendo alterações para se tornar mais rígida. "Essa lei já está atualizada com a lei 13641/2018. Ela vem dando mais uns apertos e mais algumas exigências no sentido de proteção à mulher."
Os tipos de delitos com punições previstas na lei englobam violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. "A física é mais fácil de perceber porque aparece, mas as outras vão deixando a mulher com a autoestima muito deteriorada. Por vezes elas acham até que merecem a pancada." 

Na casa da mulher a vítima também recebe o acompanhamento de psicólogas e assistentes sociais. "É importante que a mulher seja tratada por uma psicóloga! Sem isso, ela vai voltar para o agressor." Anna relata que a lei deveria ser mais rigorosa para evitar os casos. "Eu entendo que se o agressor fosse preso, julgado e condenado já na primeira agressão, inibiria a convicção da impunidade. Mas a prisão só ocorre em caso

de morte, que seria o feminicídio, só que antes de chegar a isso, existiu todo um caminho de idas e vindas." Segundo ela, a tendência é de que a lei se torne cada vez mais severa, porque agora as mulheres estão tendo a coragem de denunciar. "As mulheres estão ficando mais encorajadas, elas estão procurando os meios de proteção, e com isso estão aparecendo cada vez mais agressões. Agora elas estão tendo coragem de pedir ajuda e gritar socorro!"

Ryane Leão
Ryane Leão


REFERÊNCIAS:

KAUR, Rupi. Outros Jeitos de Usar a Boca. Planeta do Brasil. São Paulo, 2017

LEÃO, Ryane. Tudo Nela Brilha e Queima. Planeta do Brasil. São

Paulo, 2017

MDH divulga dados sobre feminicídio. Disponível em <https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/agosto/ligue-180-recebe-e-encaminha-denuncias-de-violencia-contra-as-mulheres;>. Acesso em 25 de setembro 2018

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